paríso do tuiuti, torto arado e os sentinelas da libertação
(texto de 2019)
Através do corte liberta-se a potência de criação, o movimento, a transformação do que antes se apresentava inerte ou comum. Através do corte há recriação e abrem-se caminhos: “O fio de corte dividiu sua vida a partir daquele ponto, nos tempos que se foram”. Torto Arado começa pelo Fio de Corte e acaba em Rio de Sangue, nas primeiras páginas, ao cortarem suas línguas com uma faca de prata, as irmãs Bibiana e Belonísia libertam a recriação dos sentidos em suas vidas, nas que foram e nas que virão.
Ao me deparar com o romance de 2018 de Itamar Vieira Júnior, amiúde ouvia música em cada linha. Como cicatriz que coça ainda, um samba-enredo que ficou na memória acompanhou minha leitura quase do início ao fim, o enredo da Paraíso do Tuiuti na voz de Grazzi Brasil. Enquanto meus olhos absorviam as histórias, debrucei na sonoridade e no significado da palavra "sentinela". Talvez diria que é graciosa se não tivesse em si o peso e a força de posto militar. Penso ter sido o samba, o complemento nominal que me fizeram ouvi-la graciosa, "sentinela da libertação".
Da música e dos sentimentos que irromperam pela leitura escrevo, sem pretensões que não sejam a de um vínculo e organização sentimental, o percebido encontro fortuito de duas obras que se lançaram no mesmo ano, marcado pelos 130 anos da formalizada abolição da escravidão e de infeliz coincidência pelas recém-feitas reformas trabalhistas sob o governo de Michel Temer. Da infeliz coincidência se fez o gigante enredo da Tuiuti, o qual se encontra na gênese com Torto Arado, como rios que partilham a mesma nascente.
O livro traz na capa, em sua edição brasileira, duas mulheres negras que dão as mãos no centro e, com as outras mãos, seguram Espadas de Santa Bárbara. Amalgamada à Iansã por meio dos raios, a Santa é celebrada em grandes festas, brincadeiras de Jarê, nos dezembros de Água Negra, fazenda-espaço do romance. O Jarê, por sua vez, tem sua história amalgamada às histórias dos povos que chegaram e foram levados à Chapada Diamantina, cruzando os cultos bantu, nagô e o culto de caboclo, sendo também estrutura vital das histórias que se desdobram.
Na encruzilhada dos caminhos possíveis, penso que o romance pode ser breve descrito como uma história de encantamento e encantarias fundidos à luta pela terra, pelo direito à liberdade e o direito à História do povo negro, tendo os Orixás e os Encantados como sentinelas de sua libertação. No princípio, se imagina um tempo de distante passado. Depois, se evidencia já assinada há tempos a Lei Áurea. Meio a tão poucas mudanças, o cativeiro se mostra permanente, social, ainda que assuma aspecto diferente da senzala: dos canaviais à mineração, da mineração ao campo.
"Meu Deus, Meu Deus
Se eu chorar não leve a mal,
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social."
Na Sapucaí, a Paraíso da Tuiuti apresentou um enredo marcando os 130 anos da assinatura da Lei Áurea. O samba-enredo, “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” deu vida na Avenida a diferentes processos de escravização, povos que foram escravizados durante a história e os mecanismos que davam continuidade à escravização dos negros no Brasil. No abre-alas, cativos acorrentados têm sua redenção através dos Pretos Velhos, entidade dos cultos afrobrasileiros. Os versos pedem a Deus a libertação do cativeiro social pela luz do candeeiro, instrumento muito ligado a essas entidades nos cultos de umbanda brasileiros.
A atualização da consciência da escravidão proposta pelo carnavalesco Jack Vasconcelos se apresenta nas alegorias do Tumbeiro e Neo-Tumbeiro, reformado em sua aparência mas ainda sustentado pelo trabalho dos que atravessam os tempos acorrentados, respondendo aos mesmos senhores que se vestem de forma diferente e assinam diferentes papéis com sua bondade cruel, sentenciando uma nova morte.
"Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente"
Donana trouxe seu filho, Zeca Chapéu Grande, ao mundo em meio a uma plantação de cana, quando era ainda cativa na Fazenda Caxangá e os capatazes não permitiram que ela deixasse de trabalhar naquele dia. O facão, a cana e o filho na vida de morte. A terra no romance constitui de forma simultânea matéria, espaço, tempo e instrumento. Na terra se tem o filho, na terra se enterra o pai e a mãe. Da terra molhada, do barro, se constroem as casas dos trabalhadores, que não podem ser de alvenaria - não, a alvenaria é só do Senhor. Na terra se plantam a abóbora, o quiabo e a batata, que o Senhor vistoria e pega para si o montante, e também se colhem os cultivos que dão o lucro aos donos da terra por herança. Os herdeiros brancos das casas de alvenaria. Na terra escorre o sangue daquele que ousou se levantar contra a exploração contínua da escravidão. A aurora tem cor de sangue.
continua na parte 2:
paraíso do tuiuti, torto arado e os sentinelas da libertação – parte dois
Se no desfile da Tuiuti os Pretos Velhos tomam a dianteira para luz e proteção, no romance quem vem à frente é Ogum ferreiro, ainda que seu nome não apareça nenhuma vez nas linhas de Itamar. Ogum foi o primeiro agricultor e o primeiro caçador, de sua forja vieram o arado que rasga a terra - e dá ao livro o nome - e a faca cintilante que Donana roubou da…