paraíso do tuiuti, torto arado e os sentinelas da libertação – parte dois
Se no desfile da Tuiuti os Pretos Velhos tomam a dianteira para luz e proteção, no romance quem vem à frente é Ogum ferreiro, ainda que seu nome não apareça nenhuma vez nas linhas de Itamar. Ogum foi o primeiro agricultor e o primeiro caçador, de sua forja vieram o arado que rasga a terra - e dá ao livro o nome - e a faca cintilante que Donana roubou da casa grande com a certeza crescente de que deus a perdoaria. É pelo arado que vivem e pela faca que fazem morrer. Na faca Donana degola o marido que estuprou sua filha e na faca, com a força dos ancestrais, Belonísia faz rio de sangue do proprietário do latifúndio.
Arrebatada pelos encontros, lembrei de Luiz Antônio Simas, que em uma música escreveu:
“Ogã de Ogum no ventre de um tumbeiro vem pra aldeia
Deixou o arado em Ire,
Trouxe o Obé pra defender seu povo
E quem vai nascer de novo”.
Ogum vem com seu povo dentro do tumbeiro e, ao chegar em Água Negra, coexiste em arado e obé. O furto do aço por Donana se desdobra em defesa de si e dos seus, mesmo após sua morte. No samba da Tuiuti, ao anunciar que onde há liberdade não tem ferro nem feitor, segundo Preto Velho, é preciso lembrar que o ferro de Ogum não se direciona ao trabalho em sua concepção capitalista e muito menos tem seu fim na tortura. Ao roubar a faca de um senhor de terras, a mesma que depois abrirá o pescoço do herdeiro, firma o pensamento de que um dia os instrumentos do senhor não mais serão usados para construir casas grandes.
"Eu fui mandiga, cambinda, haussá,
Fui um Rei Egbá preso na corrente."
Pelas rodas, rezas e firmamentos de Zeca Chapéu Grande, o curandeiro pai de santo, os Orixás e os Encantados guardam e trabalham pelos homens e mulheres da fazenda. Velho Nagô é dono do corpo e do espírito do curandeiro. Iansã aponta sua espada ao prefeito, que um dia ao povo prometeu uma escola, foi pela ventania que desvelou-se a promessa silenciosa, fingida esquecida, e foi cobrada. Santa Rita Pescadeira, velha encantada dos rios, mulher-peixe, faz de Miúda seu cavalo e na sua dança, lança suavemente sua rede. É ela quem narra sua trajetória junto ao povo de Água Negra, narra a vinda do neto de um rei de Oyó, o qual teve a vida ceifada pela mineração e a acusação de roubo de um diamante. Narra a travessia dos tristes tempos como rios caudalosos. A história daquele povo de Água Negra começou muito antes e pela força dos ancestrais resistia o seu quilombo.
Itamar escreve: "Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. Não poderiam arriscar fingindo que nada mudou porque os homens da lei poderiam criar caso. Passaram a lembrar para seus trabalhadores como eram bons, porque davam abrigo aos pretos sem casa, que andavam de terra em terra procurando onde morar. Como eram bons, porque não havia mais chicote para castigar o povo. Como eram bons, por permitirem que plantassem seu próprio arroz e feijão."
A Tuiuti canta: “falta em seu peito um coração / ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz”
A bondade cruel colocada pela Tuiuti é revelada a cada página de Torto Arado, lá onde a palavra escrita não chegava e não valia. A lei que lá valia era a do senhor, desde o princípio: as casas dos que trabalhavam não podiam ser iguais à casa daquele que ganhava o dinheiro do trabalho que não fazia. Não se podia comprar nada fora da fazenda, nada que não tivesse o preço alto do senhor. A colheita de suas pequenas roças pra subsistência, cuidada pelas mulheres e crianças, se devia ao senhor, pela bondade de oferecer a terra pra arar, a morada. A lei dourada nunca chegou em alguns lugares, em alguns chegou, mas o povo não sabia ler, em outros ainda, chegou ofuscada, disfarçada de pedra.
"Atravessei o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio bravo. A luta era desigual e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes."
No livro, Santa Rita Pescadeira, após a morte de seu último cavalo, que é aquele que possibilita sua expressão em movimentos encarnados, flutua sobre o passado e o presente. Com suas palavras tece sua morte e a vida de seus protegidos de longa data. Penso que seu relógio é maior que o mundo e não se conta em horas, mas em anos. Os ponteiros são imensos e leves. Alguém lembrou que ainda poderia haver justiça. A Encantada, ao ver novamente o rio de sangue negro estendido pela terra e se ver sem cavalo, sem vida e esquecida pelos seus, planeja cautelosa. Pelas histórias do passado e do presente narrativo de Água Negra construí em mim o significado de sentinela, como quando a gente aprende uma nova palavra e nela encontra a síntese e organização de sentidos e pensados que antes da palavra foram emaranhados de fios soltos.
Belonísia herdou o aço cintilante de sua avó, enquanto Bibiana transpõe em si a liderança do pai e também a luta do companheiro morto. Bibiana falava à frente, verbalizava a existência do seu povo com a palavra lá dantes nunca ouvida, quilombo. A mulher-peixe guiou as irmãs na guerra silenciosa pela paz. Madrugadas a fio, incendiada de revolta, Bibiana levantava com sua enxada e voltava coberta de terra e com mãos que sangravam. Nada se dizia, mas com a força de suas mãos dilaceradas ela apenas abria um caminho. Ao chegar em Belonísia, "a fúria que havia cruzado o tempo", a Encantada fez cair na armadilha feita pela outra irmã a onça herdeira da casa grande. Um único golpe com a faca. Soaram o som do machado que nunca existiu, o som do arado na carne e o som da boca muda que saía como um trovão, atestando a feitura da justiça.
Penso ainda inevitavelmente em Milton Nascimento, em sua música também “Sentinela”:
“Morte vela sentinela sou do corpo desse meu irmão que já se vai
Revejo nessa hora tudo que ocorreu, memória não morrerá
Vulto negro em meu rumo vem
Mostrar a sua dor plantada nesse chão
Seu rosto brilha em reza, brilha em faca e flor
Histórias vem me contar
Longe, longe, ouço essa voz
Que o tempo não levará
Precisa gritar sua força e irmão, sobreviver
A morte inda não vai chegar se a gente na hora se unir
Os caminhos num só,
não fugir e nem se desviar.”
Sou e sei muito pouco, mas, ainda que não me deixasse, me deslumbro com a palavra. Sentinela, substantivo feminino de significado guardião, aquele que guarda, que garante a vida, o corpo e o espírito. A beleza da Tuiuti se evocar como sentinela da libertação de seu povo. Como flecha ou raio me atravessa Torto Arado e os sentinelas do povo de Água Negra, Exu, Ogum, Iansã, Santa Bárbara, Xangô, Nanã, Oxóssi, Oxum, Santa Rita Pescadeira, Velho Nagô, os caboclos da mata, Sete-Serra, Tupinambá, Tomba-Morro, Pombo Roxo, Marinheiro, Mãe d'Água, Nadador, Mineiro, Cosme e Damião, todos os ancestrais, também sentinelas da libertação de seu povo.